Resenha | “O líder em movimento” é o mais novo discurso poderoso de BK’
O disco é um dos grandes lançamentos de 2020 e soa mais factual do que nunca
Um dos lançamentos mais aguardados do ano (e porque não dos últimos anos) ganhou vida no último dia 8 de setembro. Depois de muita espera, o mundo finalmente pôde ouvir o terceiro álbum de estúdio do Abebe Bikila, o nosso BK’. “O Líder em Movimento” é o mais novo capítulo da potente trajetória do rapper carioca, o projeto sucede aos discos Gigantes (2018) e Castelos e Ruínas (2016).
Debutando na cena há quatro anos com um álbum que hoje é tido como referência no rap e que já ostenta o status de clássico, no trabalho seguinte BK mergulhou no furdunço e trouxe uma pluralidade de sons e participações que só abriram o leque artístico do rapper. Em 2020, “O Líder em Movimento” soa necessário, pungente e demonstra um claro amadurecimento estético e artístico.
É o primeiro trabalho que o artista assina com seu nome de batismo, Abebe Bikila. Para quem não sabe a origem do nome, vou poupar o google para você, ele é uma homenagem ao maratonista etíope que foi o primeiro negro africano a ganhar medalha de ouro em uma Olimpíada (Roma/1960), isso tudo correndo descalço.
Em 36 minutos dispostos em 10 faixas o disco não conta com participações especiais, sendo o trabalho mais pessoal do rapper. Oito faixas foram produzidas por Jonas Profeta, seu parceiro desde “Castelo e Ruínas”, além de Nansy Silvz e a dupla Deekapz, com uma faixa cada. E já destaco a mixagem e produção como um dos pontos altos do disco. Arthur Luna, El Lif Beatz e Mike Bozzi (Kendrick Lamar, Post Malone, SZA e mais) mixou, produziu e masterizou o registro. As contribuições deles resultam num disco direto, com beats secos e a utilização de instrumentos e elementos de apoio como guitarra, sintetizador e violino que trazem personalidade e ritmo.
Entretanto, é nas letras que realmente vemos a grande potência do Líder em Movimento. Mesmo tendo sido escrito quase inteiramente em 2019, BK transita por temas que estão sendo pautas no agora influenciadas pelo “BLACK LIVES MATTERS” e manifestações antirracistas. O carioca traz discursos poderosos sobre racismo, relação com dinheiro e poder, relacionamentos, a ascensão da direita conservadora no Brasil, críticas as estátuas em homenagens que existem a figuras escravistas. A nível de letra se aproxima bem mais do “Castelo em Ruínas”, seu primeiro trabalho, mas aponta para um discurso mais enfático. Tem muito papo reto.
Abebe Kibila é um líder em movimento que busca por liberdade, liberdade ao povo negro. Isso fica muito explícito na faixa de abertura que já expõe toda a proposta do álbum.
Em Movimento, Abebe referencia os maiores nomes do hip-hop estadunidense Tupac Shakur (2Pac) e The Notorious B.I.G, ambos assassinados. Na mesma canção ele também cita Malcom X, Marielle, Martin Luther King, Thomas Sankara. O que eles têm em comum? Todos negros que em busca de liberdade para seu povo foram silenciados e mortos.
O discurso do interlocutor é de alguém inconformado e que clama por mudança, justiça e liberdade. A produção da música é poderosa, beat denso que conduz os versos sábios e certeiros de Abebe. É a primeira vez que o BK’ inicia um álbum com uma introdução falada que fica a cargo da super competente atriz e cantora Polly Marinho.
A liberdade passa pela independência financeira também. Em Bloco 7 e Porcentos 2 em diversos trechos ele rima sobre como o dinheiro também pode ser uma estratégia de guerra. A primeira tem um beat sofisticado e para além de críticas ao estado racista ele cita como o dinheiro pode ser esse escudo de conflitos e relaciona isso ao dinheiro como ferramenta para comunidade em ajudar a sua quebrada e seus iguais. Em Porcentos 2, ele discorre sobre os desafios de ascender e lidar com o dinheiro, tem trechos que me lembra muito algo que eu viria em tuítes e vídeos da Nath Finanças, como nesse:
Guarde dinheiro, aquele centavo do troco
Passa no teste do muito, quem mantém a fé com pouco
Não faça nenhum trabalho sem faz-me-rir
Cansamos dessa merda de deixar rico mais rico
Tem uma frase dessa música que ficou na minha cabeça: Não podemos ser legal, normal, temos que ser incríveis. Sim!
Visão se destaca em toda tracklist por conta das “Scratch” (aquela técnica de arranhar o disco diversas vezes bem popular nos anos 80/90 no hip hop. (rappers por favor, voltem a usar stratch em suas músicas). Mais um instrumental impecável, Abebe canta sobre dinheiro, violência, privilégio branco e embranquecimento do rap. O discurso do Abdias Nascimento, um dos grandes líderes na luta pelos direitos civis e humanos das populações negras do Brasil, é um grande positivo da música e de todo álbum. Além disso, é bastante representativo o rapper escolher o Abdias como referência, já que ele era conhecido como ‘O Líder’ quando estava vivo.
Amor é um dos pontos baixos do álbum. Mesmo trazendo o tema dos relacionamentos (detalhe, ela não é uma lovesong) e flertando com o funk, a música quebra o ritmo de ataque e vigor trazida nas anteriores e a produção não surpreende. Porém, o refrão é muito bom e pode funcionar ao vivo.
É em Poder que a trajetória musical de BK’ e do interlocutor do disco se coincidem. A música traz as ambições e gana do artista na cena do rap nacional. Em uma produção que cresce à medida que os versos inteligentes são ditos, a canção também aborda a disputa por espaço e status no gênero. A música tem uma quebra, podendo ser dividida sob dois olhares que representa as duas faces distintas desse poder que veio com sua arte e o consequente sucesso. O poder, assim, pode ser glória e sofrimento, simultaneamente.
Como ser à frente do tempo, se é comum pararem no tempo
A sétima da tracklist, Megazord abre com um sintetizador muito promissor que se mantém numa segunda linha durante a música. A letra pode ser interpretada de uma forma que esse poder, dinheiro, fama, enfim, adquirido tem que ser compartilhado de forma coletiva como um megazord (dos filmes e séries Power Rangers que consiste na junção dos lutadores numa máquina muito potente). Mas, é uma música que ainda assim pode passar despercebida por um ouvinte desatento.
Pessoas é uma das minhas favoritas de todo “O Líder em Movimento”. Ela conta com uma sample de “Minha Gente”, do clássico Sonhos e Memórias (1972), de Erasmo Carlos. É nela onde vemos o conceito por trás desse líder de forma mais orgânica e reflexiva possível. BK’ evidencia a ideia de que o conhecimento popular, pode ser maior que qualquer “líder sábio”. Na canção, ele se afasta da ideia de que o líder é o detentor de todos os conhecimentos e possui ideias fantásticas, visto que muitos ditadores e tiranos, já foram vistos dessa forma “magnífica”. A produção é espetacular, tem até um violino que combina bastante com o ambiente melancólico da música.
Lugar faz referência ao título do CD e ao seu antecessor “Gigantes”, tem um autotune no refrão que a diferencia bastante das outras. É uma canção sobre autoestima, autoafirmação, e abraça a filosofia Sankofa de forma ainda mais evidente. É preciso voltar ao passado para ressignificar o presente. A guitarra no final! Boa.
O Líder em Movimento encerra com Universo com um beat leve, descontraído e que lembra aquelas caixinhas de músicas que tem uma bailarina dançando dentro. BK encerra sua trajetória refletindo sobre seus sonhos, pesadelos, angústias e ideias, destaca muito seu legado. O nosso líder não tem um final perfeito como num filme da Disney, muito pelo contrário. Nós líderes erramos, temos fraquezas e imperfeições. E tá tudo bem. Nós vencemos por estar vivos, em movimento.
Esse é o mundo real, onde reis sentem medo
Deuses não aguentam o peso, vontade se perde em desejo
Universo não vê bem, não vê mal, ele vê vontades
VEREDITO
O Líder em Movimento é um passo à frente de tudo que BK construiu até aqui. Ele carrega o papo reto e os beats densos do Castelo e Ruínas e a personalidade e presença do Gigantes, mas vai além. O discurso incisivo, direto do carioca se torna ainda mais necessário no atual contexto político-racial do Brasil e do mundo.
É um disco que traz refrões marcantes e poderosos para cantar ao vivo, produção e mixagem de primeiro escalão, mas que convence principalmente por seu discurso. Abebe Bikila entrega para gente mais um álbum poderoso e que só reforça o seu posto como um dos rappers mais versáteis e talentosos da atualidade.
Se vai envelhecer bem ou mal só o tempo dirá, mas agora, no presente, soa como um manifesto de guerra e poder negro.